segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

ASSOMBRAÇÃO DE PLACENTA

O escritor campo-maiorense Jacob Fortes brinda esse Blog com mais um de seus trabalhos. Vale a pena ler Assombração de Placenta. Confira:

Sétimo e Oitavo eram irmãos. As suas infâncias, no regaço libertário do sertão, escoaram-se remansosamente sob as notas da passarada em festa, porém pontuadas por momentos que marcam qualquer quadra infantojuvenil: contendas, vivacidades, ledices, daninhezas.
Enquanto Sétimo revelava, desde cedo, gosto pelos estudos, traço da mãe, puxadora de novenas, Oitavo, forjando-se nas coordenadas do pai, consagrava-se à vida campestre e seus instantâneos.
A separação dos irmãos tornou-se inevitável. Sétimo, em busca de seu destino, desatou-se cedo, ao primeiro buço, pelo mundo, meio que assustado com a própria coragem, em busca de estudos eminentes, deixando Oitavo nos quefazeres da vida campesina. Isso foi nos tempos em que a vida agreste era marcada pela fé, pela religiosidade, pelas histórias de assombração e pelo Lunário Perpétuo: um almanaque popular, bíblia dos camponeses, ilustrado com xilogravuras e difundido, mais das vezes, por meio de oitivas durante os serões familiares sertanejos. (o Lunário foi inventado em Valência m 1594 e expurgado pela inquisição em 1632).
Enquanto Sétimo, ao cabo de anos, prosperava no magistério superior na capital, Oitavo, — cujo vezo irresistível consistia em realizar caçadas para posteriormente, assentado nos calcanhares, recontá-las com pitadas de achegas fantasiosas — crescia na fama de contador de histórias; mentiroso ante as bocas delatoras. Do glossário de histórias desse façanhudo contador, desarquivei ASSOMBRAÇAO DE PLACENTA para difundi-la entre os que ainda rendem homenagem ao fabulário brasileiro. Ei-la.
A caçada, infrutífera, chegara ao termo. Oitavo, fatigado, exortou os cachorros, esfalfados, a pegarem o caminho de casa; estes à frente, Oitavo atrás.  O clarinar altissonante do carijó “lasca-peito”, saudando a alvorada, reafirmava a Oitavo a proximidade de sua casa. Repentinamente, na pretidão da noite, um vulto, indistinto, mas que remetia a uma noiva de véu, pôs-se no meio do caminho, suspenso do chão feito um pêndulo retesado. Conflagrado de arrepios Oitavo, num misto de reprimenda e obsequiosidade, vozeou: — por favor, retire-se do meu caminho!  A figura branca, verticalizada e dormindo na mudez, permaneceu estática; envolta no que parecia ser um jaleco alvacento. Oitavo repetiu o aviso agora de forma exasperada, mas debalde. Quedo estava e quedo permaneceu o espectro. Baldadas todas as advertências e evitando fraquejar no medo, avultado, que lhe fizera decair a coragem, Oitavo bradou: — se deseja algo de mim diga logo, mas retire-se do meu caminho.  Se não sair por gosto seu sairá pelo gosto da minha faca e sob ela cairá. Mais uma vez a aparição manteve-se inerte, fato que excitou Oitavo ao combate; movido, evidentemente, por um medo maior que a coragem. Sem nenhum tipo de reação do fantasma, Oitavo, de faca à mão, instintivamente arremessou, com ímpeto, uma pedra, circunstância que fez o vulto, incontinente, desabar como se tivesse dependurado nas alturas; desapareceu por completo. Pasmado, Oitavo escutou, na sequencia, o relincho da Medalha, sua égua de estimação, da cor do azeviche, que, sofrendo na dor de demorado partejo, assustara-se com a pedra que lhe caíra à anca e, arrojando-se à frente, num impulso, conseguira, enfim, expulsar o potrinho de modo cabal. A consequente ruptura do envoltório placentário, cândido, fez desaparecer, por completo, a assombração de placenta.

“Nem tudo que parece é, porém tudo é se assim lhe parece”. 



Nenhum comentário: