quarta-feira, 9 de setembro de 2015

UM CORAÇÃO REFORMADO. (Por Jacob Fortes. 10.09.2015).


Desde o berço os órgãos do corpo humano funcionam cheios de motivação. Seus ânimos fazem lembrar o aprazimento das crianças no playground. Porém, com o tempo decorrido começam a apresentar discrepâncias de desempenho; vão-se desmotivando, trabalhando entre regular e sofrível. Uns alegam cansaço, outros balbuciam resmungos inaudíveis sem precisar a natureza das suas queixas. Há também os irritados, cheios de discordâncias, vivem incitando os vizinhos à revolta como se quisessem incendiar coivaras. Enfim, cada qual com suas queixas, patologias e síndromes.
Ao meu coração, esse resignado “boi de carro” que labuta dentro do meu peito, sucedeu que, esfalfado ante a canga do tempo, ameaçava não ir adiante; é o que diziam os laudos médicos. Nesse estado de quem ameaça desabar, fez-se, não de vontade, o meu principal oponente. Isso me metia medo; ter um inimigo, mesmo arquejando, morando dentro de mim. Nem sempre o perigo vem da ação de quem pode, mas da inação de quem está privado de fazer. Em decorrência desse estado de quase apagamento, podia-se antever a suspensão do bombeamento do precioso líquido, de tom escarlate-solferino, que deixaria de dar de beber todo o canteiro. Desse modo, seco o leito dos regatos, dos canais, das regueiras, portanto, sem o Poço de Jacó” para proceder à rega, (perdoe-me o Evangelho de Jesus pela comparação irreverenciosa), pus-me a orar, pedindo a interveniência do alto.
Destarte, era inadiável submetê-lo a um tratamento que pudesse estimulá-lo a cumprir as suas competências, não sei se regimentais ou estatutárias, para as quais fora criado, mesmo que isso exigisse uma intervenção mais severa, inclusive porque, segundo os laudos, tropicava em avarias. E foi debaixo desse gélido sobrosso, dessa inquietação pavorosa, que tomei o alvitre de recorrer a um especialista, o cirurgião cardiovascular Ricardo Corso, que lhe aplicou um disciplinamento; impingiu-lhe uma reforma, vigorosa, que o deixou recauchutado: três safenas, uma mamária. O meu peito de “garrincha”, tão escasso quanto delicado, adquiriu feições de monstro catita. No bojo da reforma a esperança de não sair cedo do palco quem poderia (senão por merecimento, mas por misericórdia) permanecer até o último ato, enfim, não ver cortado o fio da existência antes do epílogo, antes de testemunhar a transcorrência das estações. 
E assim é a vida. Quando se pensa que ela segue o seu curso ordinário o extraordinário se antepõe. “Quando achamos que sabemos todas as respostas, o mundo modifica as perguntas”.   Ninguém sabe o que nos aguarda, Deus sabe. “Quando o discípulo, ou a obra, fica pronto, o mestre aparece”. Aliviado com o resultado formidável da obra de engenharia médica (aterradora), nada me resta senão agradecer; agradecer em tom de salmo: obrigado, primeiramente ao mestre celestial: meu Senhor e meu Deus; obrigado ao mestre terreal: Dr. Ricardo Corso, cirurgião, e sua equipe.  “Um médico, só por si, vale alguns homens”. Agradeço sobremodo ao meu “boi de carro”, pelo sacrifício de haver resistido a tantas vexações, mas revigorado permite a este velho carreiro, por um pedaço de tempo, carrear pela estrada da vida, (contornando as vaidades tolas), e entoando intimamente cânticos em louvor a Deus. Agradeço aos parentes e amigos por me haverem apalpado com palavras de conforto. A todos, por favor, relevem a incontida emotividade de quem esteve sob a ameaça de um exército de malfeitores: temor, incerteza, abatimento, melancolia, mas que se evadiram graças às palavras ternamente sinceras que os parentes e amigos fizeram jorrar sobre mim de modo tão carinhoso a moldes de chuvas de flores. Verdade que agosto, com os seus dias queimosos, tinha para oferecer apenas a nudez das árvores realçada pela nota triste do sabiá no galho, mas setembro, cheio de solidariedade enviou, a título de cortesia, os buquês primaveris; muitos, aliás, segregando néctares que me serviram de fármaco.
Eis que a aflição passou; ficaram as manchas de choro e os gemidos do tamanho dos destroços. Cresceu o meu débito, impagável, inscrito na dívida ativa do sobreceleste. Por já ter sido agraciado nada peço para mim, mas rogo a Deus que livre das enfermidades do corpo e da alma todas as criaturas: humanos e os animais.
Esta página vitoriosa de incentivo à vida, valentemente pelejada por um Corso — não da Córsega de Napoleão, mas do Rio Grande do Sul — a quem dei contornos literários, ergo ao insigne cirurgião cardiovascular, Ricardo Barros Corso, notável da Medicina, mãos enluvadas, tão servo do seu ofício quanto Miguel Couto o foi: “Retirai-me os atributos da Medicina e nada mais me resta. Desde que me entendi, a ela dediquei os meus pensamentos e depois todos os meus atos, e se neste empenho até hoje me consumo só nele me retempero. Para ela (a medicina) os meus anseios, as minhas aspirações e o meu trabalho. Teria remorso de distrair em outros cuidados o meu tempo {...}”.
Nessas horas infaustas, sofrimento, abatimento, é que ganha especial relevo uma Maria, uma Fernanda, uma Carmem, não importa o nome, enfim mulheres extremosas que, fortalecidas no sentimento de amor, velam o amado de modo compassivo sem ao menos perceber que sofrem. Feitas de brandura e firmeza elas, de modo luminoso, vão desbastando desalentos e infundido a fé. Quem as tem que as guarde não somente para as ocasiões de aperturas, mas para o companheirismo, que revigora, fortalece. Cá tenho a minha. Além de Maria também é do Socorro; em cujos atributos há uma particularidade: a de ler os meus pensamentos.
Desta cirurgia de grande porte convalesço, extenuado, limitado de voz e movimentos, porém esperançoso e agradecido. Benefícios são bem-vindos, inclusive os de sabor acre. Se alguém tem alguma dádiva propiciatória ao meu propósito de soerguimento, não precisa luxo: basta uma prece, uma intenção, uma palavra, uma canção, uma “Mercedita”.
A convivência do sofrimento ensina a humildade e lembra, na lição de cada dia, que o homem não é senão o sonho de uma sombra”.


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